Aprendizagem online: Um estudo de caso

 

No final de 2021 fiz uma subscrição anual da MasterClass, uma plataforma de e-learning cuja proposta de valor assenta no acesso a figuras de topo nos seus campos de atuação. Em apenas algumas horas, é possível aprender a arte da cozinha italiana com Massimo Bottura, a ciência da meditação com Jon Kabat-Zinn, ou as teorias da economia com Paul Krugman.

Deste lado, o objetivo era aprender mais sobre o processo de escrita, por isso no espaço de um ano fiz um curso de storytelling com o Neil Gaiman, outro de escrita não ficcional com o Malcolm Gladwell e ainda um de guionismo com o Aaron Sorkin. É discutível se a experiência me tornou ou não capaz de escrever melhor, mas teve sem dúvida outra vantagem: permitiu-me analisar o desenho dos cursos na perspetiva do formando e fazer uma reflexão aplicada sobre as condições essenciais à aprendizagem online.

Um modelo para a análise

Poderia basear este estudo de caso em diferentes modelos e teorias da aprendizagem, mas optei por um referencial que reúne três características que me parecem interessantes: é baseado em conhecimento vindo das neurociências, tem sido validado pela investigação e é simples de integrar e aplicar. 

Falo do modelo AGES, segundo o qual há quatro ingredientes fundamentais que devem estar presentes em qualquer experiência de aprendizagem para que a retenção e posterior recuperação da informação aconteça:

1. Atenção: o desenho da formação deve garantir que os participantes se mantêm atentos e focados. Parece óbvio, mas numa era em que as interrupções e o multitasking se tornaram constantes, a atenção é das condições mais difíceis de assegurar numa experiência de aprendizagem. Para manter a atenção e o foco dos participantes numa formação à distância, as sessões devem ter entre 50 a 55 minutos e contemplar intervalos a cada 20 minutos de atenção sustentada. 

2. Geração: a formação deve criar oportunidades para que os participantes gerem as suas próprias ligações em relação ao conteúdo. Isto é importante porque formamos memórias ao fazer associações entre novas ideias e conhecimento prévio. Nas sessões online deve por isso encorajar-se os participantes a partilhar regularmente o que aprenderam, por palavras suas e em diferentes formatos, com os seus colegas, amigos, família ou redes mais alargadas. 

3. Emoção: a experiência deve ativar emoções, já que experienciá-las durante a fase de codificação de novo conhecimento ativará o hipocampo, uma região do cérebro que ajuda a consolidar novas informações na memória. Surpresa, curiosidade, e até um nível de desconforto moderado podem potenciar a retenção das aprendizagens. 

4. Espaçamento: as sessões devem ser espaçadas no tempo, uma vez que a aprendizagem é mais efetiva quando esse intervalo existe, e sobretudo quando ele inclui uma ou mais noites de sono. No caso das formações online, é ainda mais importante evitar-se os programas de dia inteiro. É preferível dividir o programa em sessões múltiplas em dias diferentes.

O estudo de caso

Vejamos agora como o modelo AGES se aplica ao desenho dos cursos da MasterClass:

Atenção: os mais de 150 cursos da MasterClass estão organizados em aulas que nunca excedem os 20 minutos. A lição mais longa a que assisti tinha 16 minutos. Além disso, cada aula está dividida em segmentos, delimitados por separadores, de 2 a 5 minutos cada. 

Geração: cada curso da MasterClass é acompanhado de um manual, que além de resumir as principais ideias de cada aula propõe exercícios que desafiam os participantes a fazer as suas próprias experiências a partir do que aprenderam. No entanto, não sendo uma experiência sincronizada com a de outros participantes, não há troca de experiências entre pares. Além disso, na medida em que a premissa de base é a da inacessibilidade dos professores, não há acesso a feedback sobre os resultados dos exercícios. 

Emoção: a plataforma procura criar e explorar emoções de diferentes formas, começando pelos cenários em que as aulas são gravadas: visualmente interessantes, ricos em pormenores, inspiradores. Existe também alguma componente de surpresa na forma como as aulas são desenhadas, fazendo-se uso de diferentes localizações para as gravações e de diferentes métodos além do expositivo (simulações, estudos de caso, análises de documentos). No que diz respeito ao conteúdo partilhado, o recurso às histórias e testemunhos pessoais desperta empatia e facilita a recordação (ver o Neil Gaiman a folhear esboços iniciais dos seus livros enquanto recorda o seu processo de escrita é mais memorável do que ouvir uma lista de pontos sobre “como começar a escrever um livro”). Por fim, a curiosidade é estimulada através do efeito “espreitar atrás das cortinas” que o acesso a estas figuras de renome possibilita. 

Espaçamento: ainda que seja possível ver duas ou mais aulas de seguida, a existência de separadores no início e final de cada lição (semelhantes ao genérico e aos créditos de um filme ou de uma série) garante espaço para refletir sobre as principais ideias antes de avançar para um novo tema. Além disso, o facto de os instrutores aparecerem nas aulas com roupas e adereços diferentes transmite uma sensação de progressão, de mudança. 

Conclusão e novas questões 

Os cursos da MasterClass que tive oportunidade de analisar cumprem todos os critérios do modelo AGES, à exceção de um: ainda que existam estímulos à Geração de associações próprias em relação ao conteúdo, falta uma componente de partilha e feedback. As aulas são complementadas com um manual de resumos e exercícios que promovem a prática, mas sem o feedback dos instrutores e colegas a experiência de aprendizagem fica incompleta.

Recorrendo a outro exemplo de aprendizagem à distância, em 2020 participei num desafio de escrita que decorria da seguinte forma: ao longo de cinco semanas, todas as sextas-feiras ao final do dia era lançado um exercício que deveria ser resolvido e enviado para a formadora até à terça-feira seguinte. As respostas eram então apreciadas e comentadas individualmente, tanto em termos globais como em relação a critérios específicos de análise. A partilha de informação sobre “como escrever” era mínima - o que fez a diferença foi a oportunidade de praticar e receber feedback.

Para corresponder a todos os princípios do modelo AGES, faltaria assim, na minha perspetiva, incluir esta componente no desenho dos cursos. Não estando esta dimensão acautelada, poderão os próprios formandos construí-la, quer encontrando formas de partilhar o que aprenderam (este artigo seria um exemplo), quer convidando alguém para fazer os cursos em parelha e desafiando-se a trocar feedback sobre os exercícios. 

Independentemente de confirmarmos ou não que os cursos da MasterClass (e de outras plataformas semelhantes) respeitam os princípios do modelo AGES, a dúvida que persiste, para mim, é a seguinte: será que o acesso facilitado aos melhores do mundo potencia ou, pelo contrário, condiciona a aplicação das aprendizagens na prática?

Existe alguma controvérsia quanto ao que a MasterClass está, de facto, a oferecer: tratar-se-á verdadeiramente de uma plataforma educativa ou de uma mera uma fonte de entretenimento, inspiração e até fuga à nossa própria realidade? 

Até que ponto é que a disponibilidade deste tipo de conteúdo poderá, no limite, impedir as pessoas de experimentar, testar e aprender na prática, quer porque se perdem num catálogo infinito de formações, quer porque é avassalador ouvir especialistas de renome a falar sobre o seu tema de interesse, elevando o desempenho a um patamar que parece inatingível?

O Seinfeld, que não faz parte do grupo de professores da MasterClass, diz algumas vezes que quando começou não havia escolas nem cursos de stand-up comedy. A única forma que tinha de aprender era escrever o seu material e ir para os clubes de comédia testá-lo. Ainda hoje é assim: cada vez que sobe ao palco conduz uma experiência quase científica, em que os dados que a audiência lhe vai dando vão sendo processados e catalogados pelo cérebro para que, depois de terminado o espetáculo, possa iniciar o processo de reescrita.

Parece-me evidente que a oportunidade de aprender com os melhores pode ser um excelente estímulo ao próprio desenvolvimento. Mas de pouco servirá ver receitas sem nunca as testar. 

Algumas fontes consultadas, além das referidas no texto: 

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