Levar o ócio a sério (mas não muito)

Créditos da imagem: UMAS COYSA

 

A OMS lançou em junho um relatório global sobre saúde mental, segundo o qual as taxas de depressão e ansiedade subiram 25% durante o primeiro ano da pandemia. De acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, o stress ocupacional é o segundo problema de saúde relacionado com o trabalho mais reportado na Europa. O Burnout, que é um tipo específico de stress provocado pelo trabalho, é já considerado um problema de saúde pública. 

Infelizmente, é precisamente quando nos sentimos mais cansados e pressionados que temos menor probabilidade de criar oportunidades de recuperação de energia. Durante um pico de trabalho temos tendência a trabalhar mais horas, fazer menos pausas, comer de forma menos saudável, beber menos água e fazer menos desporto. 

Importa por isso criar mecanismos que contrariem este comportamento automático: colocar intervalos na agenda (dez minutos a cada hora e meia, por exemplo), proteger as pausas naturais (como o período de almoço ou o final do dia) e garantir períodos de férias regulares. 

Além do impacto direto na sensação de cansaço, estes momentos de interrupção têm também implicações para a capacidade de ver os assuntos com clareza e gerar novas ideias. 

Já em 1963, David Ogilvy, o pai da publicidade, afirmava que tirava férias com regularidade para que o cérebro pudesse descansar. Nesses períodos, dizia, “nem golf, nem festas, nem ténis, nem bridge, nem concentração; só uma bicicleta. Enquanto estou concentrado a não fazer nada, recebo um fluxo constante de telegramas do meu inconsciente, que se transformam na matéria-prima para os meus anúncios”. 

Mais recentemente, num artigo publicado em 2021 sobre os rituais de grandes Chefs de cozinha nos seus períodos de pausa, o jornalista Rafael Tonon utilizou o termo “ócio criativo” para designar um conjunto de práticas que envolviam visitar produtores, fazer viagens de campo para conhecer técnicas e ingredientes, e gerar novas ideias para o menu. 

Um exemplo um pouco mais extremo é o do designer Stefan Sagmeister, que a cada sete anos tira uma licença sabática para renovar a sua capacidade criativa. Em 2009, deu uma TED Talk sobre o poder do tempo livre, ilustrando a apresentação com um conjunto de projetos inspirados por uma temporada passada em Bali. 

Descansar ativamente

Mesmo que sejamos capazes de criar momentos de pausa e renovação de energia, a nossa tendência será para procurar formas de desligar mentalmente do stress a que estivemos expostos. É assim que acabamos a ver televisão, a fazer scroll nas redes sociais ou a jogar no telemóvel. 

Já em 1932, no mítico ensaio “In Praise of Idleness”, Bertrand Russell defendia que os prazeres das populações urbanas se tinham tornado maioritariamente passivos (na altura, ir ao cinema, assistir a jogos de futebol, ouvir rádio), porque a sua energia ativa era completamente absorvida pelo trabalho; se tivessem mais tempo livre, talvez pudessem desfrutar de passatempos em que tivessem um papel mais ativo.

Contudo, é aqui que entra um segundo paradoxo do cansaço: além do exercício físico, são as atividades que exigem algum esforço, dedicação, foco e tempo aquelas que promovem a recuperação da energia despendida durante o dia. 

No livro Uncanny Valley, publicado em 2020, Anna Wiener traça um retrato da cultura de startups em Silicon Valley em que programadores esgotados pelo ritmo avassalador da indústria tecnológica dedicam os seus tempos livres à marcenaria, a fazer pão caseiro e a aprender tudo sobre cerveja artesanal. 

Em Portugal, a Unwind Studio surgiu como forma de promover o relaxamento ativo, através do foco numa atividade manual que permite desligar do stress do dia-a-dia ao mesmo tempo que se cria algo com as próprias mãos. A fundadora, Cristina Cerqueira, que tive oportunidade de entrevistar recentemente, revela que foi uma experiência pessoal de Burnout que esteve na origem do projeto. Hoje, os clientes, maioritariamente internacionais, enviam-lhe mensagens a agradecer a iniciativa, afirmando que os kits de  bordado em tela os ajudam a descomprimir no final do dia. 

Resumo e advertência

Em suma, há dois paradoxos que condicionam a nossa resposta natural ao stress:

  1. Quando estamos sob pressão, somos menos capazes de criar oportunidades de recuperação de energia, pelo que importa criar intencionalmente momentos de pausa que a permitam renovar;

  2. Quando nos sentimos cansados, tendemos a procurar passatempos passivos, mas são as atividades que requerem esforço aquelas que mais contribuem para superar o desgaste provocado pelo trabalho. 

Há, no entanto, uma advertência a fazer (se este texto fosse um anúncio a um medicamento, era aqui que entravam as letras pequenas lidas a alta velocidade): ainda que os telegramas do inconsciente de Ogilvy tenham renascido sob a forma de campanhas publicitárias, que as viagens dos Chefs deem origem a menus estrelados, e que as experiências de Sagmeister em Bali se tenham transformado em projetos profissionais, o tempo livre não é um instrumento ao serviço da produtividade. 

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Fontes consultadas, além das referidas no texto:

  • World mental health report: transforming mental health for all. Executive summary. Geneva: World Health Organization, 2022

  • How to Recover from Work Stress, According to Science. HBR, 2022

  • Being more productive - An interview with David Allen and Tony Schwartz. HBR, 2011

  • Oliver Burkeman, The promise of play. New Philosopher #20: Play

  • Tim Dean, Embracing leisure. New Philosopher #20: Play

  • Tiffany Jenkins, Never enough. New Philosopher #22: Time

  • Confessions of an Advertising Man, David Ogilvy, 1963

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