Anotações do banal: Um exercício de atenção
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Durante 3 dias, em 1974, Georges Perec dedicou-se a um exercício ambicioso: “descrever o que habitualmente passa despercebido” na movimentada Place Saint-Sulpice.
O ponto de vista ia mudando: ora estava num café, ora mudava para outro, ora regressava ao primeiro. O seu olhar detinha-se nas repetições mas também nas excepções, no movimento e também na calma, nas pessoas, nos objetos, nos veículos, nas letras, nos números e símbolos, nas cores, padrões, sons e silêncios.
O exercício viria a dar origem ao livro “Tentative d’épuisement d’un lieu parisien” (em português, Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense), que li tão lentamente quanto possível, tentando absorver todos os detalhes e adiar o fim.
Curiosamente, pouco tempo antes tinha começado a folhear o livro “My Window”, que é também um registo (neste caso, visual) de observações banais: ao longo de dois anos, David Hockney desenhou quase todos os dias a janela que via da cama do seu quarto.
Lidos em conjunto, os dois livros pareciam querer convidar-me a “olhar devagar”: observar os detalhes, os ritmos, a passagem do tempo num dado local.
Em agosto, a oportunidade apresentou-se: tendo que fazer um exame médico durante o qual não podia mexer-me, e dando por mim sentada junto a uma janela, decidi observar o pedaço de rua que era visível da minha cadeira.
Eis, então, o que registei durante a minha tentativa de esgotar um local em Lisboa, não durante três dias, mas ao longo de duas horas de imobilidade física e muita atividade cerebral:
Carros, vários, em ambos os sentidos, sobretudo de cores escuras
Uma carrinha pequena a varrer a estrada
Uma carrinha de transporte de caixotes do lixo
Pessoas com cães
Pessoas sem cães
Folhas a abanar numa árvore
Uma pessoa a estender roupa na varanda
Três flores cor-de-laranja no topo de uma árvore de folhas verdes
Um senhor a transportar um edredão num saco transparente
Uma pessoa ao telefone
Uma pessoa com auscultadores e a segurar o telemóvel junto à cara mas sem olhar para ele
Uma carrinha de uma empresa de gestão de resíduos estacionada em cima do passeio
Uma mulher a caminhar enquanto olha para o ecrã do telemóvel, que vai virado na horizontal
Dois homens a carregar baldes de tinta e ferramentas
Flores brancas, vermelhas e cor-de-rosa no canteiro que separa os dois sentidos da estrada
Pessoas em passo lento, pessoas em passo acelerado
Pessoas com mochilas às costas
Um rapaz com mochila às costas de trotinete
Uma senhora sentada de lenço amarelo na cabeça
Uma mota, uma scooter, uma bicicleta
Um rapaz com auscultadores a abanar a cabeça
Três bonés
Seis mochilas
Cinco pares de auscultadores (às vezes em combinação com as mochilas ou os bonés)
Um senhor a espreitar à janela
Dois sinais de trânsito, uma paragem de autocarro, um símbolo de farmácia
Dois autocarros, um em cada sentido
As letras RMACI em sombra na fachada do prédio
Óculos de sol
Dois homens a mexer no telemóvel, um deles a segurar ao mesmo tempo uma banana muito madura
Uma mota grande
Um táxi preto e verde
Um rapaz de trotinete com mochila às costas e auscultadores nos ouvidos (não será proibido andar de trotinete com auscultadores?)
Um senhor mais velho de trotinete e boné
Um rapaz numa cadeira de rodas com um braço engessado
Um pássaro pequeno a caminhar no passeio (pardal?)
Um senhor numa bicicleta com um cesto à frente e uma cadeira de bebé atrás (ambos vazios)
Uma carrinha de transporte de cerveja
Uma senhora a empurrar um carrinho de bebé
Um senhor a correr de mochila às costas
Uma senhora a atravessar a rua fora da passadeira (que deve estar a uns 5 metros)
Uma rapariga a passear um cão pequeno à trela (raça Pug)
Um rapaz a passear um cão grande à trela (não sei a raça)
O motorista de um camião grande que diz “transportes especiais” a conduzir enquanto segura um telemóvel junto ao ouvido
Um rapaz de mochila a falar ao telemóvel
Uma rapariga de auscultadores a mexer no telemóvel
Um senhor de calções e chinelos
Um senhor de chapéu de palha
Um autocarro
Um senhor com um cão à trela (um Border Collie, lindo) e uma bolsa à cintura
Um rapaz a atravessar a rua fora da passadeira a uns 7 metros da mesma, leva encomendas na mão
Uma senhora com um saco de pano ao ombro e uma embalagem de detergente na mão
Um carro de uma escola de condução
A sombra das letras na parede do prédio, agora mais baixa, só consigo ver bem um A
Um vidrão refletido numa porta de vidro da clínica
Uma senhora a atravessar a estrada a 2 metros da passadeira
Um casal de braço dado, ambos de bengala nos braços opostos
Um autocarro parado para deixar entrar a senhora que atravessou a estrada fora da passadeira
Um rapaz de boné, mochila e auscultadores ao pescoço
Uma carrinha da Santa Casa da Misericórdia
Um táxi preto e verde
Uma carrinha azul da polícia
Um rapaz alto de boné com a roupa e as mãos sujas de tinta branca
Antes de começar o exercício, contava terminá-lo antes do fim do exame, por puro aborrecimento. Quando as duas horas chegaram ao fim, tive pena de não poder continuar a registar o que aconteceria ao longo da manhã.
“Olhar devagar” e “colecionar detalhes” são duas das práticas que proponho no meu livro, e este exercício permite fazê-las em simultâneo, desafiando-nos a focar a atenção no presente e a (re)descobrir os espaços em que nos movimentamos.
Não é preciso dedicar-lhe dois anos, três dias ou sequer duas horas - creio que 30 minutos serão suficientes para estimular a capacidade de observação e ganhar uma maior consciência e apreciação da realidade.
Convido-te a experimentar. Se quiseres partilhar os teus registos, escreve-me para ana@yellow-pad.com.

