As empresas precisam de historiadores

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Os primeiros guias Lonely Planet foram criados numa máquina de escrever que a Maureen Wheeler levava para casa ao fim do dia, quando terminava o seu dia de trabalho como secretária numa empresa de vinhos. 

O Mark Constantine, fundador da LUSH, começou por desenvolver produtos para o cabelo num quarto transformado em laboratório, utilizando apenas produtos naturais e materiais sintéticos que considerava seguros, enquanto trabalhava como freelancer num salão de cabeleireiro.

Em 1972, quando a Patagonia ainda se chamava Chouinard Equipment e era a principal empresa de equipamento de escalada nos Estados Unidos, Yvon Chouinard e Tom Frost subiram uma das rotas icónicas do Yosemite National Park e aperceberam-se do impacto devastador que os pitões de metal que vendiam estavam a causar na paisagem natural, pela violência da sucessiva colocação e remoção a martelo. Nesse mesmo ano lançaram uma alternativa mais responsável para com o ambiente, abrindo o catálogo com um editorial que defendia o conceito de “escalada limpa”. 

A identidade de uma empresa faz-se de milhares de pequenas histórias. Como surgiu, que períodos históricos atravessou, que decisões críticas marcaram o seu caminho, que mudanças testemunhou e fez acontecer, como lidou com o sucesso e com a adversidade, quem integrou e viu partir… 

Conhecer estas histórias é uma forma de entender melhor o seu propósito, os valores que a orientam, o lugar que ocupa no mundo e o legado que deixa para o futuro. Documentá-las e partilhá-las com a comunidade em que se insere (clientes, parceiros, colaboradores) permite dar voz a essa identidade de forma natural e autêntica.

O desafio, segundo Patti Sanchez, Chief Strategy Officer na empresa de comunicação Duarte, está no facto de essas histórias viverem sobretudo na memória dos colaboradores, nos documentos a que só algumas equipas têm acesso, ou nos testemunhos que os clientes partilham em conversas informais. E por isso sugere que todas as empresas deveriam ter nas suas equipas uma pessoa cuja missão seria capturar a História da empresa a partir da recolha destes fragmentos. 

A ideia não é tão inovadora quanto possa parecer.

No verão de 2009, o filósofo Alain de Botton foi convidado por Colin Matthews, Chief Executive da BAA (empresa que na altura operava vários aeroportos no Reino Unido), a passar uma semana em Heathrow como escritor residente. Com acesso ilimitado e liberdade editorial, teria direito a uma secretária estrategicamente posicionada na sala de partidas, onde se poderia dedicar a coligir material para produzir um livro. O objetivo era, obviamente, comercial - Mathews é aliás citado na introdução, dizendo que uma brochura de marketing seria mais facilmente vista como “banha da cobra” do que a palavra de um escritor. O livro foi distribuído gratuitamente a 10.000 passageiros e mantém-se até hoje à venda, como testemunho de um período específico na história da empresa (a BAA foi entretanto obrigada a vender todos os aeroportos à excepção de Heathrow, em 2012 a sua designação foi alterada para Heathrow Airport Holdings, e em 2014 Colin Mathews deixou a liderança da companhia) e da própria aviação (quão diferente seria um relato escrito no verão de 2020?).

Um outro exemplo é o da Levi Strauss & Co, que desde 2014 conta com Tracey Panek como Historiadora residente. A sua função consiste em gerir os arquivos da empresa como um ativo-chave, seja apoiando designers ou brand managers no processo de desenvolvimento de novos produtos através da inspiração e do conhecimento que vive nos materiais históricos, seja agindo como porta-voz do legado da marca em diversos fóruns, desde o blog corporativo a websites externos. 

Claro que nem todas as empresas terão a possibilidade de contratar um historiador a tempo inteiro ou um escritor a tempo parcial. O que fazer, então, se for este o caso? 

Se o objetivo passar por fazer uma recolha pontual de histórias (para lançar as bases para uma campanha de comunicação ou recolher conteúdo para um manual de cultura, por exemplo), o Jeremy Connell-Waite, designer de comunicação global da IBM, partilha uma sugestão que qualquer pessoa pode pôr em prática: conduzir uma “expedição arqueológica” ao passado da companhia, em busca de histórias escondidas que permitam compreender a sua essência.

Este exercício pode também ser feito em equipa, e constitui uma boa oportunidade para reforçar laços através de uma viagem a memórias partilhadas. Usando uma tela (física ou virtual), desenham-se colunas que representam intervalos de tempo (um mês, um ano, uma década) e os participantes são convidados a registar os eventos mais relevantes de que se recordam em cada coluna (sejam eles positivos ou negativos). No final, é feito um debriefing em torno dos momentos identificados. Ler este artigo, e também este, pode ajudar a preparar a atividade. 

Caso o objetivo seja garantir que o registo das histórias se faz de forma continuada ao longo do tempo, cada um de nós pode assumir o papel de arquivista informal, documentando episódios, testemunhos e aprendizagens relevantes para o futuro, e disponibilizando-os para consulta, ou partilhando-os de forma explícita nos momentos mais adequados (como reuniões de equipa ou debriefings de projeto. 

Pode também constituir-se uma equipa de bibliotecários ou embaixadores da memória, que ficam responsáveis por criar e gerir um repositório partilhado, convidando colegas de equipa (ou toda a organização) a contribuir para o mesmo. Neste caso, é importante que o formato de registo seja simples, e que se criem algumas regras para evitar sobreposição de conteúdos. Este artigo pode ajudar. 

Quando decidiram abrir um negócio em 1985, os meus pais pesquisaram os potenciais fornecedores nas Páginas Amarelas. O meu filho já não passará horas a folhear o catálogo impresso, mas conhecerá este pedacinho - e outros - da história da empresa dos avós, porque ela está registada num livro que produzimos para oferecer a alguns clientes em 2021.

E a história da tua empresa, quem a vai preservar?

Fontes consultadas (além das referidas no texto):

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