Mulheres artistas: Criatividade nos intervalos

Foi o título que primeiro me chamou a atenção:

“Como Jenny Jackson escreveu um best-seller enquanto os filhos estavam no banho”. 

A história, arquivada numa secção dedicada ao tema da parentalidade na revista TIME, deixou-me perplexa: a autora escreveu o seu primeiro romance ao longo de quatro meses, enquanto mantinha o seu emprego, usando primordialmente três blocos de tempo: 

  • Entre as 4h30 e as 6h45 da manhã (quando era a única acordada em casa)

  • Entre as 6h45 e as 8h30 (com os filhos já acordados, até o marido se levantar)

  • Ao final do dia, sentada na sanita durante o banho dos filhos (que se prolongava durante uma hora). 

A descrição transportou-me para um exercício de representação visual das rotinas de várias figuras proeminentes das artes e das ciências, feito por RJ Andrews a partir do livro Daily Rituals: How Artists Work.

Nos gráficos, tal como no livro, figuram sobretudo rituais de homens. O próprio autor, Mason Curey, viria a admitir esse desequilíbrio: dos 161 perfis analisados, apenas 27 eram mulheres, o que o levou, anos mais tarde, a publicar um novo volume integralmente dedicado às rotinas de 143 escritoras, pintoras, compositoras, escultoras, dramaturgas e cientistas. 

Mergulhei então na sequela Daily Rituals: Women at Work com uma questão em mente: como seriam os ciclos de 24 horas na vida destas mulheres?

A resposta viria também sob a forma de imagem: “tempo-confetti”. A expressão é da jornalista Brigid Schulte, que se dedicou a investigar o tempo de lazer das mulheres ao longo da história. 

Sendo certo que há no livro exemplos de mulheres que puseram as tarefas domésticas em pausa para se dedicarem aos filhos e ao trabalho, mulheres que optaram por não constituir família, e mulheres que a abandonaram em prol da sua carreira, uma grande proporção dos perfis analisados ilustra na perfeição esta metáfora. O tempo criativo, para muitas artistas, era um conjunto de breves momentos espalhados ao longo do dia. Vejamos alguns exemplos.

A escritora Shirley Jackson (1916-1965) tinha quatro filhos e um marido alheado das tarefas domésticas. Numa entrevista em 1949 afirmou: “50 por cento da minha vida é passada a lavar e a vestir as crianças, a cozinhar, a lavar a loiça e as roupas e a costurar. Depois de deitar toda a gente, viro-me para a minha máquina de esquecer e tento criar coisas concretas novamente.” Escrevia nos intervalos - enquanto um bebé dormia a sesta, enquanto as crianças estavam no jardim de infância, e à noite quando todos descansavam. Com alguma ironia, constatava que a escrita, que para o marido era um trabalho árduo, para ela era uma forma de relaxar - “Por um lado, é a única maneira de me sentar.”

A escultora Lila Katzen (1932-1998) mantinha o seu estúdio em casa e aproveitava para trabalhar quando os filhos dormiam a sesta. Se as crianças acordassem e ela ainda não estivesse no ponto de terminar o que tinha em mãos, dava-lhes lápis e papel para que se mantivessem entretidas durante algum tempo. Retomava novamente o trabalho entre as oito da noite e as duas da manhã. Também Ruth Asawa (1926-2013), que teve seis filhos, acreditava que a arte deveria fazer parte da vida diária, e fazia as suas esculturas com as crianças por perto, sempre que conseguia encaixar esse trabalho no meio de outras tarefas. 

Clara Schumann (1819-1896) não podia praticar piano durante dias ou semanas a fio, porque o marido, o compositor Robert Schumann, exigia silêncio para compor. A dada altura conseguiu recuperar duas horas por dia, entre as 18h00 e as 20h00, quando o marido saía para beber uma cerveja. Era nessa altura que podia dedicar-se à sua própria prática. Apesar das exigências do marido e de ter tido oito filhos, conseguiu, durante catorze anos de casamento, fazer pelo menos 139 concertos, para o que terá contribuído o facto de serem uma fonte importante de rendimento para a família. 

A pintora Alice Neel (1900-1984) criou dois filhos sozinha, trabalhando durante a noite quando as crianças eram pequenas ou durante o dia quando já andavam na escola. Nunca considerou distanciar-se da pintura, acreditando que fazê-lo durante alguns anos significaria “divorciar-se da arte” e abdicar desse mundo para sempre. 

Opinião similar tinha a escultora Barbara Hepworth (1903-1975), que enquanto os filhos eram pequenos procurou manter a disciplina para trabalhar um pouco todos os dias, às vezes apenas por dez minutos. Na sua perspetiva, as ideias poderiam continuar a desenvolver-se nos bastidores desde que se mantivesse em contacto com os seus projetos. Mesmo produzindo menos peças, acreditava ela, evoluiria ao mesmo ritmo que alguém que tivesse todo o tempo disponível para trabalhar. 

Doris Lessing (1919-2013), que começou por abandonar marido e dois filhos para se dedicar integralmente ao propósito de escrever, e que mais tarde viria a fazê-lo enquanto criava um terceiro filho sozinha, trabalhava depois de deixar a criança na escola e fazer as compras necessárias para a casa. Durante o dia alternava constantemente entre trabalho e tarefas domésticas, fazendo intervalos para lavar a loiça, arrumar uma gaveta, ou preparar chá, considerando estas atividades “um caminho físico para a concentração.” 

Também a cineasta Agnès Varda (n. 1928) encontrou nas suas circunstâncias domésticas um motor para a criatividade. Em 1974, com o prazo de um ano para fazer um filme e um filho pequeno sob o seu cuidado, decidiu filmar sem sair de casa. “Disse a mim mesma que eu era um bom exemplo da criatividade das mulheres - sempre um pouco presa e sufocada pela casa e pela maternidade”. Ao questionar-se sobre o que seria possível criar a partir destes constrangimentos, ligou um cabo elétrico especial com oito metros de comprimento a uma caixa elétrica de sua casa e decidiu conceder-se esse espaço limitado para gravar - só poderia deslocar-se até à extensão máxima do cabo. A partir daqui, filmou as vidas diárias dos comerciantes do seu bairro para o filme Daguerréotypes

Há, apesar de tudo, uma diferença entre estes exemplos e os casos, mais recentes, de Jenny Jackson e Brigid Schulte. Ao passo que as mulheres aqui retratadas procuravam encontrar tempo para fazer o seu trabalho, Jackson procurava espaço para se dedicar a um projeto paralelo à sua carreira e Schulte ambicionava ter oportunidades de lazer. 

Poder-se-ia também dizer que nenhuma das coisas, lazer e interesses pessoais, faltava nas rotinas dos homens que foram contemporâneos destas artistas. 

Mas este não é um texto sobre mulheres versus homens. É uma homenagem à tenacidade das mulheres para reclamar um espaço só seu, ainda que em alguns casos esse espaço seja apenas mental. À sua capacidade para “investigar as pausas” (uma expressão de Sarah Ruhl, dramaturga e mãe de três filhos) e lá encontrar o ímpeto, a motivação e a energia para criar. 


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